terça-feira, 27 de março de 2012

Capítulo 6 - "Sobre a indução", de Bertrand Russel

Reproduzo na íntegra o texto de Russel sobre o problema da indução - tema importante para a lógica e ciência (e, portanto, importante para nossos estudos). Leitura coplementar, embora VALIOSA! Vale a pena ler também o textículo sagaz e ilustrativo "O peru indutivista", também de Russel, clicando aqui. Enjoy it!


Capítulo 6

Sobre a indução[1]

 

Em quase toda a nossa discussão anterior nos preocupamos com a tentativa de lançar luz sobre nossos dados no processo do conhecimento da existência. Que coisas existem no universo cuja existência nos é conhecida porque temos um conhecimento direto delas? Até aqui nossa resposta foi que temos um conhecimento direto dos nossos dados dos sentidos, e, provavelmente, de nós mesmos. Sabemos que isso existe. E os dados dos sentidos passados que recordamos, sabemos que existiram no passado. Este é o conhecimento que nossos dados nos proporcionam.

            Mas se quisermos fazer inferências destes dados – se quisermos conhecer a existência da matéria, de outras pessoas, do passado anterior ao começo de nossa memória individual, ou do futuro, devemos conhecer princípios gerais de algum gênero por meio dos quais possamos fazer tais inferências. Devemos saber que a existência de uma espécie de coisa, A, é um sinal da existência de uma outra espécie de coisa, B, seja ao mesmo tempo que A, seja em algum tempo anterior ou posterior, como, por exemplo, o trovão é um sinal da existência anterior do relâmpago. Se acaso não conhecêssemos isso, nunca poderíamos ampliar nosso conhecimento para além da esfera de nossa experiência privada; e esta esfera, como temos visto, é sumamente limitada. A questão que temos de considerar agora é se esta ampliação é possível, e em caso afirmativo, como se realiza.

            Tomemos como exemplo uma questão sobre a qual nenhum de nós tem, de fato, a menor dúvida. Todos nós temos a convicção de que o sol nascerá amanhã. Por quê? É esta crença simplesmente o resultado cego da experiência passada, ou pode ser justificada como uma crença razoável? Não é fácil descobrir uma prova por meio da qual possamos julgar se uma crença deste tipo é razoável ou não, mas podemos pelo menos determinar que classe de crenças gerais seriam suficientes, se fossem verdadeiras, para justificar o juízo de que o sol nascerá amanhã, e muitos outros juízos similares sobre os quais se baseiam nossas ações.

            É evidente que se nos perguntarem por que acreditamos que o sol nascerá amanhã, naturalmente responderemos: “porque tem invariavelmente nascido todos os dias”. Temos uma crença firme de que ele nascerá no futuro porque tem nascido no passado. Se nos interrogarem sobre os motivos por que acreditamos que ele continuará a nascer como tem nascido até aqui, podemos apelar para as leis do movimento: a Terra, podemos dizer, é um corpo que gira livremente, e este corpo não deixa de girar a menos que alguma coisa interfira externamente, e não existe nada externamente que possa colidir com a Terra de hoje até amanhã. Evidentemente, poderíamos duvidar de que estejamos completamente certos de que não existe nada externamente que possa interferir, mas esta não é a dúvida que interessa. A dúvida que interessa é em relação a se as leis do movimento continuarão atuando até amanhã. Se se levanta tal dúvida, nos encontraremos na mesma posição em que nos encontrávamos quando se levantou a dúvida sobre o nascimento do sol.

            A única razão para acreditar que as leis do movimento continuarão atuando é a de que elas têm atuado até aqui, na medida em que nosso conhecimento do passado nos permite julgar isso. É verdade que temos uma maior quantidade de evidências passadas a favor das leis do movimento do que a favor do nascimento do sol, porque o nascimento do sol não é mais que um caso particular do cumprimento das leis do movimento, e existem inúmeros outros casos particulares. Mas a verdadeira questão é esta: um número qualquer de casos em que se cumpriu uma lei no passado proporciona evidência de que se cumprirá o mesmo no futuro? Em caso negativo, é evidente que não temos base alguma para esperar que o sol nasça amanhã, nem para esperar que o pão que comermos em nossa próxima refeição não nos envenene, nem para nenhuma das outras expectativas apenas conscientes que regulam nossa vida cotidiana. Pode-se observar que todas estas expectativas são apenas prováveis; assim não temos que procurar uma prova de que elas devem ser cumpridas, mas apenas alguma razão a favor da opinião segundo a qual é provável que se cumpram.

            Assim sendo, para tratar esta questão devemos, inicialmente, fazer uma distinção importante, sem a qual logo nos envolveríamos em confusões insolúveis. A experiência nos tem mostrado que, até aqui, a freqüente repetição de uma série uniforme ou de uma coexistência tem sido a causa de esperarmos a mesma série ou coexistência na próxima ocasião. Um alimento de uma determinada aparência tem, geralmente, um determinado sabor, e constitui um duro golpe para nossas expectativas quando o aspecto habitual se acha associado a um gosto inusitado. Através do hábito associamos as coisas que vemos com determinadas sensações táteis que esperamos de seu contato; um dos traços terríveis dos fantasmas (nas muitas histórias de aparições) é que eles não nos propocionam quaisquer sensações táteis. As pessoas incultas que viajam ao exterior pela primeira vez ficam muito surpresas, a ponto de se tornarem incrédulas, quando descobrem que sua linguagem nativa não é compreendida.

            Este tipo de associação não se limita aos homens; nos animais também é muito forte. Um cavalo que foi conduzido com freqüência ao longo de um determinado caminho resiste a andar em outra direção. Os animais domésticos esperam seu alimento quando vêem a pessoa que geralmente os alimentam. Sabemos que todas estas grosseiras expectativas de uniformidade estão sujeitas ao erro. O homem que alimenta todos os dias o frango no final lhe torce o pescoço, demonstrando com isso que teriam sido mais úteis ao frango opiniões mais refinadas em relação à uniformidade da natureza.

            Mas apesar dos erros destas expectativas, não há dúvida que existem. O simples fato de que alguma coisa aconteceu várias vezes leva os animais e os homens a esperar que ela aconteça novamente. Assim, nossos instintos certamente nos levam a acreditar que o sol nascerá amanhã, mas é possível que não estejamos em melhor posição do que o frango que, inesperadamente, teve seu pescoço torcido. Portanto, devemos distinguir o fato de que as uniformidades do passado nos causam expectativas em relação ao futuro, do problema de saber se existe algum motivo razoável para atribuir valor a tais expectativas deste o momento em que se suscita o problema de sua validade.

            O problema que devemos analisar agora é o de se existe alguma razão para acreditar no que se tem denominado “a uniformidade da natureza”. A crença na uniformidade da natureza é a crença de que tudo o que ocorreu ou ocorrerá é uma instância de alguma lei geral que não tem exceção alguma. As grosseiras expectativas que foram mencionadas estão todas sujeitas a exceções, e suscetíveis, portanto, de frustrar aqueles que as mantém. Mas a ciência habitualmente pressupõe, pelo menos como uma hipótese de trabalho, que as leis gerais que têm exceções podem ser substituídas por leis gerais que não têm exceções. “Corpos sem apoio no ar caem”, eis uma lei geral à qual os balões e os aviões representam exceções. Mas as leis do movimento e a lei da gravitação, que explicam a queda da maioria dos corpos, também explicam porque os balões e os aviões podem subir; assim, as leis do movimento e a lei da gravitação não estão sujeitas a estas exceções.

            A crença de que o sol nascerá amanhã poderia ser falsificada se a Terra entrasse de repente em contato com um corpo muito grande que destruísse sua rotação; mas as leis do movimento e a lei da gravitação não seriam violadas por este acontecimento. O objetivo da ciência é descobrir uniformidades, tais como as leis do movimento e a lei da gravitação, de tal modo que, por mais que ampliemos nossas experiências, não sofram exceções. Nesta busca a ciência logrou um êxito evidente, e podemos admitir que suas uniformidades têm se mantido até aqui. Mas com isso retornamos à questão anterior: admitindo que elas têm sempre se mantido no passado, temos alguma razão para supor que se manterão no futuro?

            Já se argumentou que temos motivos para esperar que o futuro se assemelhará ao passado, porque o que era futuro converteu-se constantemente em passado e sempre se assemelhou ao passado, de tal modo que, na realidade, temos a experiência do futuro, ou seja, do tempo que anteriormente era futuro e que podemos denominar de futuro do passado. Mas este argumento, todavia, encerra uma petição de princípio. Temos experiência dos futuros do passado, mas não dos futuros do futuro, e o problema é este: os futuros do futuro se assemelharão aos futuros do passado? Este problema não pode ser respondido por um argumento que se apóie apenas nos futuros do passado. Portanto, temos ainda que buscar um princípio que nos permita saber se o futuro seguirá as mesmas leis do passado.

            A referência ao futuro não é essencial a este problema. O mesmo problema surge quando aplicamos as leis vigentes em nossa experiência a coisas passadas das quais não temos experiência alguma – como, por exemplo, em geologia, ou nas teorias sobre a origem do Sistema solar. A pergunta que realmente temos de fazer é esta: “Quando encontramos duas coisas frequentemente associadas, e não conhecemos nenhum caso em que uma ocorreu sem que a outra também ocorresse, a ocorrência de uma das duas, num novo caso, nos dá algum fundamento suficiente para esperar a outra?” De nossa resposta a esta pergunta dependerá a validade de todas as nossas expectativas em relação ao futuro, de todos os resultados obtidos pela indução, e, na realidade, de praticamente todas as crenças nas quais se baseia nossa vida cotidiana.

            Devemos conceder, inicialmente, que o fato de que duas coisas tenham sido encontradas frequentemente juntas e nunca separadas não é suficiente, por si mesmo, para provar de uma forma demonstrativa que serão encontradas juntas no próximo caso que examinarmos. O máximo que podemos esperar é que, quanto maior for a freqüência com que tenham sido encontradas juntas, mais provável será que se achem unidas em outra ocasião, e que, se elas foram encontradas juntas com muita freqüência, a probabilidade chegará quase à certeza. Nunca podemos atingir completamente a certeza quanto a isso, pois sabemos que, apesar das repetições freqüentes, no final às vezes nos decepcionamos, como no caso do frango, cujo pescoço é torcido. Assim, a probabilidade é tudo o que podemos pretender.

            Poder-se-ia argumentar, contra a opinião que estamos defendendo, que todos os fenômenos naturais estão sujeitos a um regime de leis, e que, às vezes, na base de nossas observações, podemos constatar que é possível que somente uma lei talvez convenha aos fatos em questão. Podemos responder a esta opinião de duas maneiras. A primeira é que, ainda que alguma lei que não tenha exceções se aplique ao nosso caso, na prática nunca podemos estar seguros de que descobrimos esta lei e não uma lei que sofra exceções. A segunda é que o próprio regime das leis parece ser ele mesmo apenas provável, e que nossa crença de que se manterá no futuro, ou nos casos do passado que não examinamos, baseia-se ela mesma no princípio que estamos examinando.

            O princípio que estamos examinando pode ser denominado de princípio da indução, e suas duas partes podem ser formuladas da seguinte maneira:

            (a) Quando uma coisa de uma determinada espécie A se achou associada com uma outra coisa da espécie B, e nunca foi encontrada dissociada de uma coisa da espécie B, quanto maior for o número de casos em que A e B tenham sido encontrados associados, maior será a probabilidade de que se encontrem associados num novo caso no qual sabemos que um deles está presente;

            (b) Nas mesmas circunstâncias, um número suficiente de casos de associação converterá a probabilidade de uma nova associação quase numa certeza, aproximando-a desta indefinidamente.

            Assim formulado, o princípio se aplica somente à verificação de nossa expectativa em um novo caso particular. No entanto, desejamos também saber se existe uma probabilidade a favor da lei geral segundo a qual as coisas da espécie A estão sempre associadas com coisas da espécie B, desde que um número suficiente de casos de associação seja conhecido, e que nenhum caso de falta de associação seja conhecido. A probabilidade da lei geral é, obviamente, menor que a probabilidade do caso particular, pois se a lei geral é verdadeira, o caso particular também deve ser verdadeiro, ao passo que o caso particular pode ser verdadeiro sem que a lei geral seja verdadeira. Não obstante, a probabilidade da lei geral aumenta com as repetições, assim como a probabilidade dos casos particulares. Podemos repetir, pois, as duas partes de nosso princípio em relação à lei geral, da seguinte forma:

            (a) Quanto maior for o número de casos nos quais determinada coisa da espécie A se associou a uma coisa da espécie B, (se não conhecemos nenhum caso em que haja faltado a associação) o mais provável será que A se achará sempre associado com B;

            (b) Nas mesmas circunstâncias, um número suficiente de casos de associação de A com B tornará quase certo que A se acha sempre associado com B, e esta lei geral se aproximará indefinidamente da certeza.

            Deve-se notar que a probabilidade é sempre relativa a certos dados. Em nosso caso, os dados são simplesmente os casos conhecidos de coexistência de A e B. Pode haver outros dados, os quais poderiam ser tomados em consideração, o que alteraria gravemente a probabilidade. Por exemplo, um homem que tivesse visto um grande número de cisnes brancos poderia argumentar, segundo nosso princípio, que de acordo com os dados é provável que todos os cisnes sejam brancos, e este seria um argumento perfeitamente correto. Este argumento não é refutado pelo fato de que alguns cisnes sejam negros, porque uma coisa pode muito bem ocorrer apesar do fato de que alguns dados a tornem improvável. No caso dos cisnes, um homem poderia saber que em muitas espécies de animais a cor é uma característica que varia muito e que, portanto, uma indução em relação à cor está particularmente sujeita ao erro. Mas este conhecimento seria um dado novo, que de modo algum provaria que a probabilidade relativa a nossos dados anteriores tinha sido estimada de forma errada. Portanto, o fato de que as coisas frequentemente deixam de confirmar nossas expectativas não é evidência de que estas não sejam provavelmente cumpridas num caso determinado ou numa determinada classe de casos. Assim, nosso princípio indutivo não é pelo menos suscetível de ser refutado apelando simplesmente à experiência.
            O princípio indutivo, contudo, é igualmente insuscetível de ser provado recorrendo à experiência. É possível que a experiência confirme o princípio indutivo em relação a casos que já tenham sido examinados; mas em relação a casos não examinados, só o princípio indutivo pode justificar uma inferência a partir daquilo que foi examinado para o que não foi examinado. Todos os argumentos que, na base da experiência, se referem ao futuro ou a partes não experimentadas do passado ou do presente, pressupõem o princípio indutivo; de tal modo que nunca podemos recorrer à experiência para provar o princípio indutivo sem incorrer em uma petição de princípio. Assim, devemos aceitar o princípio indutivo em razão de sua evidência intrínseca ou renunciar a toda justificação de nossas expectativas em relação ao futuro. Se o princípio não é sólido, não temos razão para esperar que o sol nasça amanhã, para esperar que o pão seja mais nutritivo do que uma pedra, ou para esperar que se nos lançarmos do telhado cairemos. Quando avistarmos alguém que consideramos como nosso melhor amigo se aproximando de nós, não teremos nenhuma razão para não supor que seu corpo não esteja habitado pela mente de nosso pior inimigo ou de alguém totalmente estranho. Toda nossa conduta se baseia em associações que têm funcionado no passado, e que, portanto, consideramos que provavelmente continuarão funcionando no futuro; a validade desta probabilidade depende do princípio indutivo.
            Os princípios gerais da ciência, como a crença num regime de leis, e a crença de que todo acontecimento deve ter uma causa, também dependem inteiramente, como as crenças da vida cotidiana, do princípio indutivo. Acreditamos em todos estes princípios gerais porque os homens tem encontrado inúmeros exemplos de sua verdade e nenhum exemplo de sua falsidade. Mas isso não oferece qualquer evidência de que serão verdadeiros no futuro, a menos que se admita o princípio indutivo.
            Assim, todo o conhecimento que, na base da experiência, nos diz alguma coisa sobre o que não experimentamos, baseia-se em uma crença que a experiência não pode confirmar nem refutar, mas que, pelo menos em suas aplicações mais concretas, parece estar tão firmemente enraizada em nós como muitos fatos da experiência. A existência e a justificação destas crenças – pois o princípio indutivo, como veremos, não é o único exemplo – suscitam alguns dos problemas mais difíceis e mais debatidos da filosofia. No próximo capítulo consideraremos brevemente o que podemos dizer para explicar este tipo de conhecimento, qual é seu alcance e seu grau de certeza.


[1] Bertrand Russell. Os problemas da filosofia. Trad. Jaimir Conte. Florianópolis: 2005.

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